Quando nada mais resta

Transcrevemos o relato que Viktor Frankl faz de uma de suas inúmeras experiências vividas como prisioneiro no campo de concentração de Auschwitz. Poderíamos completar o título da seguinte maneira: “Quando nada mais resta, ainda há a possibilidade do amor”.  O leitor poderá, a partir do texto, aprofundar sua própria reflexão sobre a capacidade de amar, intrínseca ao ser humano, pronta a se concretizar em qualquer circunstância, até mesmo quando o ser amado não se faz presente.

(O texto foi extraído do livro Em busca de sentido. V.E. FRANKL. Editora Vozes. Petrópolis (2017). Páginas 54 a 56)

                                                                                               Ismael José Vilela  

 “QUANDO NADA MAIS RESTA”

 Enquanto avançamos aos tropeços, quilômetros a fio, vadeando pela neve ou resvalando no gelo, constantemente nos apoiamos um no outro, erguendo-nos e arrastando-nos mutuamente. Nenhum de nós pronuncia uma palavra, mas sabemos que neste momento cada um só pensa em sua mulher. Vez por outra olho para o céu onde as estrelas vão se apagando, ou para aquela região no horizonte em que a alvorada desponta  por traz de um lúgubre grupo de nuvens. Mas agora meu espírito está tomado daquela figura à qual ele se agarra com uma fantasia incrivelmente viva, que eu jamais conhecera na vida normal. Converso com minha esposa. Ouço-a responder, vejo-a sorrindo, vejo seu olhar como que a exigir e a animar ao mesmo tempo; e – tanto faz se sua presença é real ou não – seu olhar agora brilha com mais intensidade que o sol que está nascendo. Um pensamento me sacode. É a primeira vez na vida que experimento a verdade daquilo que tantos pensadores ressaltaram como a quintessência da sabedoria, por tantos poetas cantada: a verdade de que o amor é, de certa forma,  o bem último e supremo que pode ser alcançado pela existência humana. Compreendo agora o sentido das coisas últimas e extremas que podem ser expressas em pensamento, poesia – e em fé humana: a redenção pelo amor e no amor! Passo a compreender que a pessoa, mesmo que nada mais lhe reste nesse mundo, pode tornar-se bem-aventurada – ainda que por alguns momentos – entregando-se interiormente à imagem da pessoa amada. Na pior situação exterior que se possa imaginar, numa situação em que a pessoa não pode se realizar através de alguma conquista,  em que sua conquista pode consistir unicamente num sofrimento, com a cabeça erguida, nesta situação a pessoa pode se realizar na contemplação amorosa da  imagem  espiritual da pessoa amada que ela traz dentro de si. Pela primeira vez na vida entendo o que quer dizer: os anjos são bem-aventurados na perpétua contemplação, em amor, de uma glória infinita…

À minha frente, um companheiro cai por terra, e os que vão atrás dele também caem. Num instante o guarda lá está, e usa o chicote sobre eles. Por alguns segundos se interrompe minha vida contemplativa. Mas num abrir e fechar de olhos eleva-se novamente minha alma, salva-se mais uma vez do aquém, da existência prisioneira, para um além e  retoma mais uma vez o diálogo com o ente querido: eu pergunto, ela responde; ela pergunta, eu respondo.

Alto! Chegamos ao local da obra. Cada qual busque sua ferramenta! Cada um pegue  uma picareta e uma pá! E todos se precipitam  para dentro do galpão completamente às escuras para conseguir uma pá jeitosa ou uma picareta mais firme. Como é! Não vão se apressar, seus cachorros imundos? Daí a pouco estamos na vala, cada um no mesmo lugar da véspera. A picareta estilhaça o chão congelado, soltando até faísca. Os cérebros ainda não tinham degelado. Os companheiros continuam calados. Meu espírito ainda se apega à imagem da pessoa amada. Continuo falando com ela, ela continua falando comigo. De repente me dou conta: nem sei se a minha esposa ainda vive!  Naquele momento descubro que o amor pouco tem a ver com a existência física de uma pessoa. Ele está a tal ponto ligado à essência espiritual da pessoa amada, a seu ser assim (nas palavras dos filósofos), que a sua presença e seu estar-aqui-comigo podem ser reais sem a sua existência física em si e independentemente de estar  com vida. Eu não sabia, nem poderia ou precisaria saber, se a pessoa amada estava viva.  (Durante todo o período do campo de concentração não se podia escrever nem receber cartas.) Mas isto, naquele momento, de certa forma, não tinha importância. As circunstâncias externas não conseguiam mais interferir no meu amor, na minha lembrança e na contemplação amorosa da imagem espiritual da pessoa amada. Se naquele momento eu tivesse sabido que minha esposa estava morta, acho que esse conhecimento não teria perturbado meu enlevo interior naquela contemplação amorosa. O diálogo espiritual teria sido igualmente intenso e gratificante. Naquele momento apercebo-me da verdade: Põe-me como selo sobre o teu coração […]porque o amor é forte como a morte  (Cântico dos cânticos, 8,6)”.

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