Misericódia e perdão

Dr. Ismael José Vilela

O Papa Francisco, na bula Misericordiae vultus, em que anuncia para 8 de dezembro (2015) o início do ano jubilar da misricória, afirma: “É triste ver como a experiência do perdão na nossa cultura vai rareando cada vez mais. Em certos momentos, até a própria palavra parece desaparecer”.

É fácil notar, no dia a dia, como a mágoa, o ressentimento, a revolta permeiam as relações. Os consultórios de psicologia, as sessões de psicoterapia, mostram a dor de uma ofensa e o entrave da mágoa e do ressentimento na vida das pessoas.

Por que, afinal, nos é tão difícil perdoar? O que se passa conosco que preferimos cultivar a mágoa e o ressentimento, mesmo sentindo que nos fazem mal? Como entender que nos agarremos com tanta força aos sentimentos que nos maltratam? 

No meu trabalho como psicoterapeuta tenho tido a oportunidade de atender pessoas que sofreram algum tipo de abuso sexual, algum tipo de violência. Em todos os casos noto que a vítima se sente culpada, tanto ou mais do que o abusador ou o agressor. A culpa, nesses casos, é tão pesada que é como se a vítima fosse seu próprio agressor.

Essa constatação tem me oferecido uma pequena luz para começar a compreender a dificuldade que as pessoas têm para perdoar quem as ofende. No caso do abuso e da agressão sexual, é como se as vítimas adotassem a culpa que é do agressor e do abusador. Por sentir em si a culpa que é do outro não concedem espaço para o perdão ao agressor porque isso implicaria, no final, o perdão para elas mesmas.

Não é difícil perceber, no nosso dia a dia, que somos acometidos por sentimentos de culpa por situações que não foram de nossa responsabilidade. Sofremos, agimos e reagimos em função desses sentimentos que nos invadem sem qualquer explicação.

Quando de fato somos ofendidos, introjetamos em nosso íntimo, como manobra inconsciente, a culpa que é do outro. Entramos assim num processo circular de retroalimentação da mágoa e da culpa. E como é difícil romper esse círculo! Não perdoando, punimos mais a nós mesmos do que a quem nos magoou ou ofendeu.

Mas ainda cabe uma pergunta: por que ou para que fazemos nossa a culpa do outro? O ser humano é naturalmente dotado da capacidade de amar. Mas se equivoca muitas vezes ao colocar em prática essa capacidade amorosa. Um dos equívocos do amor humano é exatamente este: assumir sobre si a culpa do outro. Daí podermos dizer que o amor inspirado pela culpa é um pseudoamor. A mágoa e a culpa inviabilizam o amor. Criam vínculos desintegradores. Vale a pena fazermos um exame de consciência também para percebermos as culpas que assumimos e que não são nossas.

A chave para abrirmos nosso coração para o perdão é, com certeza, estarmos profundamente convencidos no íntimo de que o outro é tão necessitado do perdão quanto nós mesmos. A misericórdia, tanto para conosco quanto para com o outro, abre uma imensa avenida por onde podemos passar, saindo de dentro de nós mesmos e indo em direção ao outro. A misericórdia é a expressão mais forte do amor, pois é com ela que Deus nos ama.

“O perdão é uma força que ressuscita para nova vida e infunde a coragem para olhar o futuro com esperança”. 

(Publicado na Revista Cidade Nova – Outubro/2015)

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