
*Extraído do livro: “A LEITURA INFINITA” – Cardeal José Tolentino de Mendonça
Em dado momento, conta Flaubert[1], Santo Antão, agitado pelas maiores fraquezas, pede a Deus coragem e entra na sua cela. Acende uma fogueira que lhe permita fixar as letras do grosso volume. E cambaleando ainda, entre fantasmas que o empurram para as derivas que ele não quer, abre a Bíblia sucessivamente (cinco vezes, precisa a novela) em busca de proteção.
Das cinco vezes, porém, fecha o livro e as mãos tremem-lhe. As obsessões contra as quais ele pugna, na depurada via da ascese, vêm incontroláveis ao seu assalto nas descrições do texto sacro. Uma voz do céu ordena que coma da grande toalha que desce sobre a terra, cheia da peçonha de répteis e quadrúpedes. A violência, o sangue e o desmando misturam-se com a névoa de sortilégios baços e de presságios. Como veneno doce, o perfume da glória adormece a paisagem… Michel de Foucauld diz, no prefácio à obra de Flaubert, que o eremita percebe que “o Livro é o lugar da tentação”. Por isso, afasta de si a Bíblia, gritando pelo socorro de Deus.
Mas a história que Flaubert conta sobre Antão Abade, no fundo, o que conta? Que é inútil impor ao texto um programa de compreensão, quando nos é pedido o contrário: que nos exponhamos ao texto, na nossa fragilidade, a fim de receber dele, e à maneira dele, um eu mais vasto.
Na verdade, que a Bíblia é lugar de prova só o não sabe quem nunca dela se aproximou. Livro Sagrado para crentes de mais de uma religião, superclássico da literatura, chave indispensável de decifração do pensamento e da história, objeto interminável de curiosidade, recepção e estudo, a Bíblia solicita, evidentemente, uma arte da interpretação. Ela tem uma espessura histórica inalienável que é preciso considerar: escrita a dois, três mil anos, em línguas com uma expressividade muito diferente da que têm as nossas, numa gramática singularíssima, escrita sobre a água, sobre o corpo, sobre o lume, abarcando gêneros tão meticulosos e díspares que, por si só, representam um desafio colossal a qualquer leitor. Mais do que um livro, é uma biblioteca: pode ser lida como cancioneiro, livro de viagens, memórias de corte, antologia de preces, cântico de amor, panfleto político, oráculo profético, correspondência epistolar, livro de imagens, texto messiânico. E colada a esta humana palavra… a revelação de Deus.

Cipriano (200-258) dizia: “Se, na oração, falamos com Deus, na leitura Deus fala conosco”. Jerônimo (347- 420), escrevendo a um discípulo, recomendava: “Não separes nunca a tua mão do Livro, nem distancies dele os teus olhos”. Cassiodoro (490-583) referia-se à farmácia da lectio: “Como um campo fecundo produz ervas odorosas, úteis para a nossa saúde, assim a lectio divina oferece sempre cura para a alma ferida”. E é ainda a imagem campestre que serve a João Damasceno (675-750): “Batamos à porta desse belíssimo jardim das Escrituras”. Poderíamos multiplicar por mil os aforismas deste tipo, que mostram como a tradição cristã se pensou, desde o princípio, como uma prática de leitura. Uma infinita leitura.
[1] G. FLAUBERT, La tentation de Saint Antoine, Paris, Gallimard, 1967.