Este artigo da fé é de todos o mais estranho para a consciência hodierna. Juntamente com o artigo sobre o nascimento de Jesus da Virgem Maria e da Ascensão do Senhor ao Céu, é aquele que mais convida a “desmitologização”, que aqui nos parece poder acontecer sem qualquer perigo ou escândalo. As poucas citações que nos sugerem algo sobre estes assuntos (1Pd 3,19; Ef 4,9; Rm 10,7; Mt 12,40; At 2, 27.31) são de tão difícil compreensão, que são susceptíveis de várias interpretações. Assim, quando eliminamos totalmente a questão, sentimo-nos aliviados por nos termos liberado de uma afirmação, que dificilmente se enquadra no pensamento de hoje. E não sentimos o remorso da infidelidade.

Mas o que ganhamos efetivamente com isso? Não será que simplesmente fugimos às questões, só por causa das suas dificuldades reais? Podemos encarar os problemas de duas maneiras: negando-os ou enfrentando-os. O primeiro caminho é o mais cômodo, mas só o segundo nos faz avançar. Em vez de pormos as questões de lado, não é melhor enfrentá-las e tomar consciência de que esses artigos da fé, ligados no ano litúrgico ao Sábado Santo, nos tocam hoje de maneira especial, uma vez que exprimem, em grande medida, a experiência do nosso último século? Na Sexta Feira Santa ainda nos fica a visão do Crucificado. Sábado Santo é o dia da “morte de Deus”, o dia que exprime e antecipa a inaudita experiência do nosso tempo, que simplesmente é de ausência de Deus: cobre-O a pedra do sepulcro, para não mais voltar nem falar. Já nem precisamos de O combater, podemos simplesmente ignorá-lo, “O Deus morreu e nós o matamos”. Este anúncio de Nietzsche faz parte da tradição da piedade cristã da paixão; exprime o conteúdo do Sábado Santo, a “descida aos infernos”.
Relacionado com esse artigo, ocorrem-me constantemente duas cenas bíblicas. Primeiro, aquela história horrível do Antigo Testamento, em que Elias desafia os sacerdotes de Baal a implorar aos seus deuses o fogo para o sacrifício. Eles bem tentam, mas naturalmente nada acontece. Elias escarnece deles, como faria qualquer pregador fanático em relação aos devotos, cobrindo-os de ridículo, caso os seus pedidos não fossem atendidos. Incita-os para que rezem mais alto: «Gritai com mais força! Talvez esse Deus esteja entretido com alguma conversa! Ou então, está ocupado ou anda em viagem. Talvez esteja a dormir. É preciso acordá-lo” (1Rs 18,27). Quando hoje lemos este escárnio lançado sobre os devotos de Baal, pode nos ocorrer algo terrível, podemos ter a sensação de que nós estamos agora na mesma situação, e que este escárnio recai sobre nós. Por mais que gritemos, parece que Deus não desperta. O racionalista parece poder dizer-nos calmamente: Rezai mais alto, talvez então desperte o vosso Deus. “Descido à morada dos mortos” – como esta é a verdade do nosso tempo, a descida de Deus ao silêncio sombrio da ausência!
Ao lado da história de Elias e da história paralela do Novo Testamento, que nos fala do Senhor a dormir no meio da tempestade (Mc 4,35 a 41), temos a história dos discípulos de Emaús (Lc 24,13 a 35). Os discípulos perturbados lamentavam a morte da sua esperança. Para eles aconteceu algo como a morte de Deus. Apagou-se o momento em que parecia ter falado. Morreu o enviado de Deus, só resta o vazio total. Ninguém responde mais. Mas, enquanto assim conversam sobre a morte da sua esperança, sem conseguirem mais ver a Deus, não se apercebem que a esperança está viva no meio deles. Não se dão conta de que “Deus”, ou melhor a imagem que tinham construído da sua promessa tinha de morrer, para que pudesse viver com mais força. A imagem de Deus, que tinham arquitetado para melhor o dominar, tinha de ser destruída. Só depois poderiam vislumbrar o céu por entre as ruínas da casa destruída, e o próprio Deus em sua infinita grandeza. Eichendorf, com a jovialidade e a forma descontraída própria do seu tempo, formulou-o assim:
“Tu és Aquele que suavemente faz, desabar
Sobre nós o que construímos,
Para que possamos ver o céu.
Por isso não me lamento”.

Assim, o artigo da Descida aos Infernos recorda-nos que a revelação cristã não consiste só na Palavra de Deus, mas também no Seu silêncio. Deus não é só Aquele que vem até nós para se revelar, é também o Deus silencioso e inacessível, o fundamento incompreendido e incompreensível, que sempre nos escapa. Certamente que no cristianismo prevalece o primado do Logos, da Palavra sobre o silêncio: Deus falou. Deus é palavra. No entanto não podemos esquecer que Deus permanece verdadeiramente escondido. Só quando fazemos a experiência do silêncio é que podemos ter esperança de escutar a sua palavra, que acontece no silêncio. A cristologia vai para além da cruz, o momento em que o amor de Deus se tornou palpável, e leva-nos à morte, ao silêncio e à noite escura de Deus. Não nos devemos admirar de que, na Igreja e na vida de cada um, sempre se torne presente a hora do silêncio, recordando-nos aquele artigo tantas vezes esquecido e posto de lado da “Descida aos Infernos’.
Considerando tudo isso, a pergunta sobre a “prova da Escritura” desaparece por si mesma, pelo menos naquele grito de morte de Jesus “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” (Mc 15,34), o mistério da Descida aos Infernos torna-se visível como um relâmpago fulminante numa noite escura. Não esqueçamos que estas palavras do Crucificado correspondem ao início do Salmo 22 (21), 2, a oração de Israel, onde o sofrimento e a esperança deste povo escolhido por Deus, e aparentemente por Ele abandonado, se resume de maneira tão comovente. Esta oração, que exprime o sofrimento profundo das trevas de Deus, termina com um cântico de louvor à grandeza de Deus. Também isto está presente neste grito de morte de Jesus, que Ernst Kasemann classificou como uma oração saída dos infernos, como a instituição do primeiro mandamento no deserto da aparente ausência de Deus. “O Filho, apesar de tudo, conserva a fé, justamente quando a fé parecia sem sentido e a realidade terrena anuncia a ausência de Deus, da qual talam, não por acaso, o primeiro condenado e a multidão. O seu grito não diz respeito ao viver ou ao sobreviver, a si mesmo, mas ao Pai. O seu grito é contra a realidade de todo o mundo”. Será necessário perguntar o que significa adoração na nossa hora das trevas? Pode ser outra coisa que se junta ao do Senhor, que “desceu aos infernos”, instituindo assim a proximidade de Deus na experiência da ausência de Deus?
Tentemos dar mais um passo na reflexão, para penetrarmos neste multifacetado mistério, difícil de abordar só por um aspecto. Consideremos primeiro mais uma afirmação exegética. Dizem-nos que a palavra “inferno” do artigo de fé é apenas uma falsa tradução de scheol (em grego hades), palavra que os hebreus usam para designar o estado depois da morte, que significa realmente uma espécie de sombra de vida (mais não-ser do que ser). Sendo assim, o significado original da afirmação que Jesus desceu ao scheol seria simplesmente que Jesus morreu. Até pode ser verdade. Mas continua a questão de saber se o assunto assim fica mais claro e menos misterioso. Penso que agora é que o problema se apresenta com toda a evidência: o que é a morte, o que acontece quando alguém morre, isto é, quando entra no poder da morte?

Todos confessamos o nosso embaraço perante esta questão. Ninguém sabe ao certo, porque vivemos para cá da morte, e dela não temos experiência. Talvez possamos tentar uma aproximação, partindo mais uma vez da morte de Jesus na cruz, onde se exprime o cerne daquilo a que chamamos a descida de Jesus, entendido como participação na morte, que é o destino de todo ser humano.
Nesta última oração de Jesus, tal como na cena do Monte das Oliveiras, o cerne profundo da Sua paixão não parece ser a sensação de uma qualquer dor física, mas a solidão radical, o total abandono. É precisamente aí que vem finalmente ao de cima o abismo da solidão do ser humano, que no fundo de si mesmo está só. Esta solidão, que se tenta camuflar de mil formas, mas que é a situação real da existência humana, contraria também profundamente a natureza humana, que não se realiza na solidão, mas na relação e na convivência. Por isso, a solidão é a região do medo, que se fundamenta no abandono radical do ser, algo que tem de ser assumido, mas que se deseja superar.
Procuremos clarificar ainda mais com um exemplo. Uma criança que tem de caminhar sozinha durante a noite por uma floresta, sente medo, mesmo que a tentemos convencer de que nada lhe acontece e que nada tem a recear. No momento em que está só no meio da escuridão e experimenta a solidão radical, nasce o medo, o medo efetivo do ser humano, que não é medo de algo, mas medo em si mesmo. O medo de algo definido é, no fundo, irrelevante. Pode vencer-se, na medida em que se retira o objeto causador do medo. Se alguém, por exemplo, tem medo de ser mordido por um cão, o assunto resolve-se rapidamente prendendo o cão. Do que falamos é de algo muito mais sério: do ser humano que, quando cai na solidão mais profunda, não sente medo de algo determinado, de que se pode liberar racionalmente; ele experimenta o pavor da solidão, a terrível exposição de sua própria natureza, algo irracional que não consegue superar.
Consideremos outro exemplo. Quando alguém tem de velar sozinho um cadáver durante a noite, vai sentir de alguma forma uma sensação estranha de medo, mesmo que não o queira admitir e consiga perceber racionalmente que não há razão para tal. Ele sabe perfeitamente que o morto nada pode fazer, e que a sua situação seria muito mais perigosa caso estivesse vivo. O que acontece é uma sensação bem diferente. Não é o pavor de algo concreto, mas a contato com a solidão da morte, o sentimento terrível da solidão em si e a experiência da precariedade radical da existência.
Temos de nos questionar sobre a forma como podemos vencer um tal medo, que não tem objeto que o justifique. A criança perde o medo no momento em que encontra uma mão que a toma e conduz, ou uma voz que fala com ela, isto é, no momento em que experimenta a proximidade duma pessoa que a ama. Também aquele que se encontra só a velar um cadáver vencerá o medo, quando se aproximar dele uma outra pessoa, quando sentir a proximidade de um tu. Na ultrapassagem do medo, revela-se ao mesmo tempo a sua natureza: é o medo da solidão, o medo de um ser, para quem viver é conviver. O verdadeiro medo do ser humano não pode ser vencido pela razão, mas só pela presença de um ser que ama.
Devemos aprofundar mais a questão. Imaginemos uma solidão onde nenhuma palavra amiga pudesse penetrar, imaginemos um abandono tão radical, onde não chegasse um tu. Essa total e terrível solidão seria aquilo que o teólogo chama “Inferno”. A partir daqui, podemos definir exatamente o significado desse conceito. Significa uma solidão onde não perpassa a palavra amor, e significa efetivamente o abandono total da existência. Quem não se lembra, a esse propósito, da posição de poetas e filósofos do nosso tempo, que afirmam a superficialidade dos encontros entre os seres humanos? Nenhum ser humano tem acesso à interioridade profunda do outro. Todo o encontro, por mais belo que pareça, só consegue anestesiar a ferida incurável da solidão. No mais fundo de nós mesmos habitaria então o interno, o desespero – a solidão tão indeterminável quanto horrível. Foi sobre essa ideia que Sartre construiu a sua antropologia. Mas mesmo um poeta conciliador e sereno como Hermann Hesse deixa transparecer os mesmos pensamentos:
“Estranho, caminhar na neblina!
Viver é solidão.
Nenhum homem conhece o outro,
Cada um está só.”
Na realidade, uma coisa é certa: Há uma noite, em cujo abismo não ecoa nenhuma voz; há uma porta, que só passamos sozinhos: a porta da morte. Todos os medos do mundo são, no fundo, o medo desse abismo de solidão. A partir daqui, percebemos porque o Antigo Testamento une numa mesma palavra o inferno e a morte, na palavra scheol. Duas realidades semelhantes: a morte é a solidão pura e simples; o inferno é aquela solidão, onde o amor nunca mais consegue penetrar.

Assim chegamos ao ponto de partida, ao artigo do Credo que fala da descida aos Infernos. Esta frase significa então que Cristo atravessou a porta da nossa solidão, que Ele, na Sua paixão, penetrou no mais fundo do nosso abandono. Lá, onde mais nenhuma voz nos alcança, está Cristo. Assim, o inferno foi vencido, ou melhor, a morte, que antes era o inferno, já não existe. Já não são a mesma coisa, porque a vida está na morte, porque ali habita o amor. O inferno só existe, quando alguém se fecha em si mesmo; ou como diz a Bíblia, é a segunda morte (cf. Ap. 20,14). A morte já não é o caminho gelado para a solidão; abriram-se as portas do scheol. Creio que, a partir daqui, podemos compreender as imagens aparentemente mitológicas dos Padres, que falam dos mortos que sobem das sepulturas e das portas que se abrem. Também se torna compreensível o texto aparentemente tão mitológico de S. Mateus, que diz que na morte de Jesus os túmulos se abriram e que muitos corpos dos santos saíram dos túmulos (CF. Mt 27,52s). Desde que a vida, isto é, o amor, habita a morada dos mortos, a porta da morte está aberta.
Texto extraído do livro: Credo para hoje. Em que acreditam os cristãos?
JOSEPH RATZINGER. Editorial Franciscana. Braga. Páginas 85 a 93.